sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Ela

Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 2008

Você sabe muito bem que não fiz viagem alguma, meus cabelos eu estou deixando crescerem até meu próximo surto e passar a tesoura enferrujada nela, o curso de desenho eu estou fazendo sem vontade e sinto sua falta. Hoje tirei o dia pra arrumar minhas coisas empoeiradas, alguns livros seus também e um cd esquecido da Adriana Calcanhotto. Está na faixa 02 (Justo agora). Não porque sempre venho até você, cutuco incessantemente até sangrar e finalmente gozo em meio ao sangue e manchas no carpete esverdeado. Tornei-me massoquista longe dos seus olhos e me mantenho sádica do seu lado. Ah, cansei de ser assim, sempre cinza só pela sua ausência. Abri todas as portas e janelas hoje. Tirei o antigo pó dos meus vestidos listrados, colhi amoras no pé e escrevi meus contos. Queimei todos ao final comendo paquecas doce, em uma tarde laranja. Aliás, vou colorir meu cabelo no mesmo tom do céu de hoje. Te mandarei mechas ruivas pra você fazer tranças.


Um dia te devolvo o cd
Saudades
Ana Luiza

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

No cinza do dia

Aqui choveu hoje e ontem. Mais ontem do que hoje. Esses dias cinzas, músicas tristes e programação decadente da TV aberta me deram brechas para lembrar da vida que se passou, de você. E lembrando de você lembrei de cartas que havia ignorado quase que de maneira inconsciente. Em meio a contas, cartas de políticos desejando Feliz Natal e alguns anúncios, duas cartas suas. Sei que não vai levar fé, mas não foi proposital de deixar tanto tempo esperando por uma resposta. Nem sei se ainda devo respondê-las, já faz uns bons dias e as perguntas pereceram. Mas sobre seu último escrito, me chamou atenção se tom esnobe, nunca foi característico seu. Até quase sorri lendo seus planos para apagar-me de sal vidinha. E o curso de desenho, já começou? A viagem, tá programada? Será longa? Desejo-te boa sorte em tudo, é o mínimo que posso fazer. Não amaldiçôo seu presente, seja feliz. Se não por você, por mim. Beijos!

P.S.: dias cinzas como esse deixa tudo mais piegas, carregado de sentimentos e talvez nem era isso que eu queria.

sábado, 29 de novembro de 2008

Rio de Janeiro, 29 de novembro de 2008

Tudo bem, se é com desprezo que você me presenteio, abro o presente sorrindo. Não quer me responder, não posso lhe forçar a fazer diferente. Um dia ainda passo na sua porta e jogo ácido nas suas samambaias com aquele verde opaco e sem vida de todos os dias. Entraria no seu quarto irritantemente organizado e arranharia com as minhas próprias unhas vermelhas os seus cd's, queimaria delicadamente todas as suas enciclopédias, desarrumaria seus lençóis alvos e perfumados, pisaria com lama nos pés nos seus travesseiros. Mas, você sabe como eu sou uma covarde imunda que nem passa pela sua avenida, esqueço seu telefone, suas chaves já joguei janela a fora.
Bem, não vou mais te importunar. Vou talvez viajar por um tempo pra qualquer lugar, deixar meus cabelos crescerem, começar um curso de desenho. Vou comprar dezenas de livros, tirar muitas fotos, fazer muitos amigos e nem lembrar que algum dia tive o calor dos seus braços.

domingo, 2 de novembro de 2008

Ela

Rio de Janeiro, 2 de novembro 2008

Olá,
Não posso te perguntar se está bem, pois seria hipócrita demais. Realmente não me importa seu estado de espírito, não hoje. Você sabe muito bem que detesto aquele gato e sabe mais ainda que não vou devolver suas cartas. Estou escutando Paralelas agora. Lembra de quantas vezes a cantei em madrugadas geladas? Provavelmente nem se lembra mais da minha voz, da textura dos meus cabelos, do meu sorriso raro. Tem certos dias que me recordo dos seus dedos desenhando maçãs nas minhas costas nuas. Éramos o pecado em carne, desejo e suor. Fui feliz do seu lado, não contei as horas ou os dias, mas tivemos momentos verdadeiramente bons. Você sempre soube como me fazer serena como uma gata mansa, quase adestrada.
Nossa casa permanece fria, mal iluminada, com meus tão queridos jornalecos espalhados pelo chão imensamente vazio sem seus passos e sapatos mal organizados. Eu roubei um cadarço seu, aquele do seu sapato favorito. Usei-o como laço pra flores mortas que um dia me deste. Elas esfarelam embaixo do meu travesseiro manchando os lençóis frios. Acordo com as mãos molhadas, agora tenho goteiras sob minha mente atormentada. Nada me faz esquecer-te, nem meu calendário vazio, muito menos suas cartas de cobrança. Cansei de te amaldiçoar, volta. Aparece ao menos pra me dar na cara pela última vez. É pouco o que te peço. Ou será que não valho nem um erguer de mãos vazias?

Espero respostas.
Ana Luiza

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Petrópolis, 23 de outubro de 2008


Boa tarde.

Se bem que a tarde não está muito boa... Não sei bem como começar essa carta. Devo começar como? Falando de você?

Você sempre foi cruel, fria e irônica — talvez por isso eu estive interessado em você algum dia. —, mas cegar o meu canário foi uma de suas atitudes mais execráveis até hoje. Acho engraçado esse seu jeito de sempre tentar me atingir usando o universo que há ao meu redor, porque sabes que a mim, diretamente, não podes atingir, e nem teria coragem suficiente para fazê-lo. Dessa vez foi o pobre do canário o ser a ter de pagar pelo aquilo que você chama de amor, de paixão, de falta ou de sei lá o quê. Enfim, não vou me estender nesse assunto falando de você e do pobre do canário agora cego em sua gaiola pequena enferrujada. Dê ele para algum gato brincar, aquele gato branco da vizinha deve gostar desse presentinho, se bem que ele é meio fresco e deve comer apenas ração Premium importada, mas dê o canário assim mesmo a ele, talvez você se divirta um pouco, talvez seja algo para entreter você por esses longos dias nos quais ainda se habitua à minha ausência nos cômodos pouco iluminados e cheios de papéis, folhetos, jornalecos e livros dessa casa que me serviu de moradia num passado recente. Deve ser divertido pra você também ver dona Lourdes, a dona do gato branco, puta da vida por causa do seu bichano de pedigree ter comido um pássaro, com todas suas penas não muito limpas, suas vísceras cheias de sangue e ainda por cima cego. É uma morte justa para o velho canário, que viver cego e naquela gaiola seria muito castigo.

Não perguntou na carta, mas quanto a mim, digo que estou bem e gostando bastante desse clima serrano, dessa falta de engarrafamento às seis da tarde e da serração que paira sobre a cidade todas as noites e perduram pela madrugada. Aqui é sempre propício um vinho e uma fondue, acho ótimo!

Estou indo antes que me atrase, tenho um compromisso logo.

Fique bem! E não se esqueça de separar as correspondências que ainda chegam em meu nome nesse seu endereço, e mande-as junto à próxima carta sua. Obrigado.

sábado, 11 de outubro de 2008

Ela

Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2008

Olá,
Pode parecer uma forma estranha de se começar uma carta, mas preciso te dizer. Ceguei o canário que você me deu. Sim, eu me senti uma mulher digna de pena ao final da tortura. Todas as manhãs ele cantava delicadamente, onde os sons deslizavam pela rubra janela de madeira. Mas, essa melodia terminou por tornar-se um martírio crescente. Essas notas me faziam recordar de todas as flores que murcharam em vão, já que você nem rega os meus sorrisos como antes. Aquele pássaro em minha janela pulando descontrolado em sua minúscula gaiola era como a minha voz na garganta. Meu real desejo era matá-lo só que minha covardia foi mais intensa que meu ardor pelo silêncio de camomila. Então, simplesmente dei-lhe a escuridão como presente aveludado. Puni-lo era necessário. Eu precisava que alguém pagasse por minhas manhãs interrompidas pela sua voz em outra garganta. Agora ele gorjeia tristonho em meio às grades enferrujadas e eu adormeço mais serena. Não digo em voz alta, mas sinto sua falta. Lavei e passei sua camisa favorita, ela agora reside em meio aos meus livros mais antigos. Não quero te devolver nada, não posso. Preciso dos seus botões pra terminar meu vestido amarelo. E mesmo que não vá, estarei na mesma livraria de sempre saboreando o aroma dos livros novos e aguardando uma resposta.

Espero que apareça
Ana Luiza