quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Petrópolis, 23 de outubro de 2008


Boa tarde.

Se bem que a tarde não está muito boa... Não sei bem como começar essa carta. Devo começar como? Falando de você?

Você sempre foi cruel, fria e irônica — talvez por isso eu estive interessado em você algum dia. —, mas cegar o meu canário foi uma de suas atitudes mais execráveis até hoje. Acho engraçado esse seu jeito de sempre tentar me atingir usando o universo que há ao meu redor, porque sabes que a mim, diretamente, não podes atingir, e nem teria coragem suficiente para fazê-lo. Dessa vez foi o pobre do canário o ser a ter de pagar pelo aquilo que você chama de amor, de paixão, de falta ou de sei lá o quê. Enfim, não vou me estender nesse assunto falando de você e do pobre do canário agora cego em sua gaiola pequena enferrujada. Dê ele para algum gato brincar, aquele gato branco da vizinha deve gostar desse presentinho, se bem que ele é meio fresco e deve comer apenas ração Premium importada, mas dê o canário assim mesmo a ele, talvez você se divirta um pouco, talvez seja algo para entreter você por esses longos dias nos quais ainda se habitua à minha ausência nos cômodos pouco iluminados e cheios de papéis, folhetos, jornalecos e livros dessa casa que me serviu de moradia num passado recente. Deve ser divertido pra você também ver dona Lourdes, a dona do gato branco, puta da vida por causa do seu bichano de pedigree ter comido um pássaro, com todas suas penas não muito limpas, suas vísceras cheias de sangue e ainda por cima cego. É uma morte justa para o velho canário, que viver cego e naquela gaiola seria muito castigo.

Não perguntou na carta, mas quanto a mim, digo que estou bem e gostando bastante desse clima serrano, dessa falta de engarrafamento às seis da tarde e da serração que paira sobre a cidade todas as noites e perduram pela madrugada. Aqui é sempre propício um vinho e uma fondue, acho ótimo!

Estou indo antes que me atrase, tenho um compromisso logo.

Fique bem! E não se esqueça de separar as correspondências que ainda chegam em meu nome nesse seu endereço, e mande-as junto à próxima carta sua. Obrigado.

sábado, 11 de outubro de 2008

Ela

Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2008

Olá,
Pode parecer uma forma estranha de se começar uma carta, mas preciso te dizer. Ceguei o canário que você me deu. Sim, eu me senti uma mulher digna de pena ao final da tortura. Todas as manhãs ele cantava delicadamente, onde os sons deslizavam pela rubra janela de madeira. Mas, essa melodia terminou por tornar-se um martírio crescente. Essas notas me faziam recordar de todas as flores que murcharam em vão, já que você nem rega os meus sorrisos como antes. Aquele pássaro em minha janela pulando descontrolado em sua minúscula gaiola era como a minha voz na garganta. Meu real desejo era matá-lo só que minha covardia foi mais intensa que meu ardor pelo silêncio de camomila. Então, simplesmente dei-lhe a escuridão como presente aveludado. Puni-lo era necessário. Eu precisava que alguém pagasse por minhas manhãs interrompidas pela sua voz em outra garganta. Agora ele gorjeia tristonho em meio às grades enferrujadas e eu adormeço mais serena. Não digo em voz alta, mas sinto sua falta. Lavei e passei sua camisa favorita, ela agora reside em meio aos meus livros mais antigos. Não quero te devolver nada, não posso. Preciso dos seus botões pra terminar meu vestido amarelo. E mesmo que não vá, estarei na mesma livraria de sempre saboreando o aroma dos livros novos e aguardando uma resposta.

Espero que apareça
Ana Luiza